segunda-feira, 17 de maio de 2010

Povo Daqui – PARTE IX – Assombrações, Misuras e Encantamentos - AMBÉ


Ambé
Fotos: Flávia Pennafort

Campos e Lago do Ambé

Era tarde da noite quando Seu Evedino e mais dois amigos, Nonatinho e Buiú mariscavam*1 no Igarapé do Ambé. Porongando*2 aqui e ali, e a noite seguia sem maiores contratempos até que os últimos resolveram ir até o rio Pedreira comprar uma bebida. Ao recusar o convite dos amigos, mal sabia Seu Evedino que vivenciaria um dos momentos mais assombrosos de sua vida. Ele se veria frente a frente com a “cabeça de fogo”.
Conta ele que viu se aproximar aquela enorme bola de fogo amarela incandescente e tomou ciência de que era a tão temida assombração. Mas reunindo toda sua coragem enfrentou a mesma quando esta já estava a uma distância comprometedora e em tom ameaçador disse: “Não vem que eu atiro”. Mal sabia "Cabeça-de-fogo" que a espingarda de Seu Evedino estava descarregada. Depois da séria ameaça a bola foi diminuindo de tamanho e alterando a cor, ficando avermelhada, depois azulada até se desfazer por completo em faíscas.


Muitas pessoas da vila do Ambé já tinham visto a aparição,
mas foi Seu Evedino Picanço Pereira, 54 anos, 
que há quinze anos quase foi “atropelado” por ela.



Seu Raimundo dos Prazeres Pereira, 64 anos, presidente da Associação dos Moradores do Ambé, nascido e criado naquela região também teve lá suas experiências macabras, uma delas foi em numa certa madrugada aproximadamente às 3 horas quando ia pro mato juntar mangaba.. “Tem que ser cedo pra juntar antes do gado comer”, justifica. “Quando vi aquele homem todo vestido de branco vindo na minha direção, cruzou o caminho comigo, dobrou numa curva e sumiu”.
E isso é só o começo. Toda os moradores da vila são testemunhas do vaqueiro que aparecia nas noites de lua ou de verão, quando subia num cavalo equipado com sela, cabeçada, de argola matinada, arrelhado,... pronto de tudo. O cavaleiro seguia galopando desde o campo em frente à vila até o lago do Ambé.


Seu Mundinho, exibe a Certidão de Auto-Reconhecimento conferida pela Fundação Cultural Palmares que certifica a Comunidade do Ambé como Remanescente das Comunidades dos Quilombos. O Presidente, agora na sua segunda gestão, trabalha para conseguir os benefícios do governo destinados às Comunidades Quilombolas.


Mas de todos os casos assombrosos o triste mesmo foi o do "encantamento" da pequena Maria de oito anos, que foi pra roça com seus pais, e desapareceu na mata. Seu Mundinho explica que era costume dos pais ir na frente para “abrir” o caminho para os filhos que os seguiam. Como a criança estava atrás, num momento de descuido dos pais, desapareceu, ou como dizem os habitantes da região, "se encantou".


Há pouco mais de70 km de Macapá, Ambé exibe
uma paisagem de campos, lagos e igarapés.

Com aproximadamente 35 famílias, a Vila da Comunidade do Ambé,
subsiste da pecuária, pesca e caça


*1 Mariscavam: mariscar: pescar
*2 Porongavam: porongar: pode significa focar com uma lanterna. Mas no interior não existiam as lanternas à pilha, muito menos à bateria, então os pescadores quando saiam à noite para mariscar colocavam uma lamparina dentro de uma lata de óleo cortada ao meio e presa a um pedaço de pau que servia de cabo, e assim conseguiam um feixe de luz artificial.

Bairro do Laguinho

Fotos: Flávia Pennafort
Igreja São Benedito

Na Quarta-feira, enquanto eu aguardava o início da procissão para pegar os ramos da murta da casa de Dona Raimunda, conversava com uma das dançadoras de marabaixo do Laguinho, uma senhora de seus sessenta e poucos anos que no decorrer do diálogo me disse que não dançaria muito aquela noite, pois o corpo da professora assassinada ( Carolina Passos ) ainda estava para ser levado para a cidade natal da família.

Sede do São José

A senhora com a qual conversava não conhecia Carolina Passos, mas foi criada dentro de uma tradição de respeito extremo ao momento doloroso pelo qual a família da professora estava passando. Fui tomada por uma estranha sensação de estar fazendo algo errado ou no mínimo desrespeitoso, pois embora também estivesse abalada com a tragédia ocorrida eu estava ali ansiosa a espera do início do marabaixo.

Sede da "Escola de Samba Boêmios do Laguinho"

Mas no bairro do Laguinho é assim mesmo, convivemos com uma forte herança cultural que nos prega certas peças com relação ao comportamento.


Sede dos Escoteiros "Veiga Cabral"

No “circuito” em que eu me criei: Odilardo Silva, Nações Unidas, Eliézer Levi, General Osório, na época de minha infância as ruas ainda não estavam totalmente abertas, a vegetação tomava conta dos caminhos e a paisagem era de lagos cercados por buritizeiros e açaizeiros. Em frente a minha casa tinha um desses lagos totalmente fechado pelas palmeiras de onde os garotos iam tirar a fibra do buritizeiro para fazer brinquedos tipo carrinhos, barcos... Mas o que eles mais gostavam de fazer lá era balar passarinhos. Como o meu “circuito” era pouco habitado e não passava carros nós podíamos ouvir o barulho que as pedras lançadas faziam nas folhas das palmeiras. Pra ir até a casa de minha avó materna, que morava e até hoje mora na rua Eliézer Levi, tínhamos três opções: pela Avenida Nações Unidas ( hoje Av. José Tupinambá ), mas este era considerado muito “longe” para os padrões da época ou dois “caminhos” mais curtos, o primeiro era subir pela rua General Osório e o segundo pela Ana Nery. Em ambos tínhamos que atravessar lagos por cima de pontes improvisadas a partir do tronco dos buritizeiros. Haja equilíbrio! O ruim era quando as “pontes” apodreciam e tinha um gaiato que substuia os troncos de buritizeiros pelos de açaizeiros. Aí não tinha jeito, tínhamos que voltar e tomar a Nações Unidas. ( e eu não querendo revelar a minha idade no perfil!!! )

Poço do Mato

Como passei a infância toda como filha única eu tinha que ir pra casa da minha vó para brincar com meu tio que era só dois anos mais velho que eu. O problema é que as brincadeiras dele eram de meninos: papagaio, peteca, caroço, etc. E foi assim que passei boa parte da infância: enrolando linha de papagaio para ele quando participávamos dos “laços” no campo do América, coletando caroço de tucumã para jogar “triângulo”, do qual tenho orgulho de dizer que era melhor que muito menino; suplicando pra minha mãe comprar petecas, me escondendo dentro de casa quando os garotos irritavam o Budego ( ou Bodego ), que pelo seu modo de vida, gestos, ou maneira de andar e falar delicados certamente foi de encontro aos costumes da época; ou gritando “Ei, Camarão Friiiiiiiito!!!” para o “Camarão Frito”, pipoqueiro que passava todas as tardes pela Eliézer Levi sob um sol escaldante fazendo com que sua pele branca sofresse as queimaduras que deram origem ao seu apelido. Nunca compramos pipoca dele, pois diziam que era ruim, mas a realidade é que dificilmente tínhamos dinheiro para esses pequenos prazeres. Versão laguinense para "A Raposa e as Uvas".

Banco da Amizade

Todas as tardes íamos comprar pão na “Dona Maria do Seu Calá”. Seu Calá era o sapateiro cuja oficina ficava na Ana Nery, próximo ao campo do América, a família dele tinha também uma pequena mercearia da qual Dona Maria tomava conta. Eu não gostava de ir comprar pão com meu tio pois ele falava: “quero três pão e meio e duas donzelas". Naquela época pegava mal aplicar a devida concordância gramatical, soava meio pávulo. Eu só ia mesmo porque uma das donzelas era minha e eu devia fazer com que ela chegasse inteira ao destino.

Do que mais tenho doces recordações são dos domingos ensolarados na piscina da Sede dos Escoteiros "Veiga Cabral" e dos arraiais das festividades em louvor a São Benedito, padroeiro do bairro, que se davam na quadra da Igreja. Lá brincávamos nas barquinhas, jogávamos argolinhas para pegar maçãs, puxávamos um minúsculo cavalinho de plástico nas pescarias, e para encerrar a noite em grande estilo desfrutávamos de bolo e guaraná.

Escola Azevedo Costa

Durante as comemorações dos 65 anos do bairro do Laguinho é impossível fugir da nostalgia ao lembrar dessses tempos, que comparados ao atual podem ser considerados como “difíceis”. Eu prefiro chamá-los de “diferentes”.

Praça Chico Noé